Li atónita a notícia de que a Câmara Municipal de Lisboa está a planear substituir a típica calçada portuguesa nas zonas “não turísticas” da cidade. O argumento? Melhorar a acessibilidade dos passeios para os habitantes com dificuldades.
A minha primeira reacção foi: “será o Dia das Mentiras?”. Pareceu-me uma ideia francamente estapafúrdia. Depois comecei a ler os “inconvenientes” das calçadas, as pedras que se levantam, a manutenção que requerem… Seguramente há pavimentos mais económicos, pelo menos a curto prazo. Mas será “mais económico” igual a “mais conveniente”?
Da minha experiência de peão em Lisboa, sem carro próprio, o grande problema da acessibilidade nos passeios tem a ver com os carros. A cidade tem demasiados carros para os estacionamentos disponíveis e por isso os condutores são “obrigados” a estacionar as viaturas em cima dos passeios, obrigando os peões (de todas as idades) a circular pela estrada.
Se a vida já é difícil para os peões que têm plena capacidade motora, que dizer de quem circula em cadeira de rodas? Ou de quem precisa de muletas? Ou ainda de quem, simplesmente, leva um carrinho de bebé?
Não há dúvida de que é necessário repensar os passeios, nomeadamente alargá-los, repará-los e instalar pedras biseladas em passadeiras e semáforos, para facilitar as subidas e descidas entre o passeio e a estrada. Mas será mesmo necessário levantar as pedras da calçada?
A calçada portuguesa apresenta muitas vantagens, algumas talvez difíceis de quantificar – ou seja, só nos vamos aperceber do que perdemos quando já não as tivermos.
Por exemplo: quem nunca ouviu falar da “luz especial” que Lisboa tem? Uma luz que marca quem vive e quem visita a cidade, e que ajuda a contrariar fenómenos como a depressão sazonal dos meses mais escuros. As pedras da calçada, ao reflectirem a luz solar, têm um papel fundamental nesse efeito.
Mais: contrariamente ao cimento, macadame e outros pavimentos mais “regulares”, a calçada portuguesa não impermeabiliza o solo. Pensem assim: chega o Outono e começam as chuvas; as zonas de cota mais baixa da cidade inundam com alguma facilidade. A calçada portuguesa, por estar assente em areia e não em cimento, ajuda a drenar a água em excesso e a combater essas inundações. Uma cidade com ainda mais superfície impermeabilizada vai ser uma cidade que inunda mais frequentemente e por mais tempo.
Do meu ponto de vista, os argumentos da estética e da tradição, considerados de menor importância por muita gente, são imensamente válidos. Pensem no ícone que é o calçadão do Rio de Janeiro. Teria a importância que tem se não fosse feito em calçada portuguesa, com um desenho típico e distintivo? Será que as nossas praças e arruamentos, os mais visitados pelos turistas, e os outros também, não vão também perder essa identidade única?
Muito a propósito, li um artigo do Guardian que fala sobre o que faz das cidades lugares “mais felizes”. No artigo são mencionados vários estudos feitos por diversas universidades, que concluíram que os munícipes mais felizes são os que têm trajectos casa-trabalho mais curtos e sem stress. A utilização de viatura própria provoca engarrafamentos diários que transformam estes trajectos em pesadelos para quem os faz.
Os estudos concluíram também que o capital social – ou seja, o valor que existe nas relações entre as pessoas – é maior em zonas onde os bairros são de utilização mista (que misturam habitação com comércio, serviços e lazer) e em que as pessoas se podem deslocar a pé – e interagir.
Esta é uma percepção que muitos de nós, peões utilizadores de transporte colectivo, já tínhamos. E é por isso que gostaria de propor que em vez de levantar as pedras da calçada que se tomem medidas noutro sentido: preservá-las, reparando os buracos que se vão fazendo com a passagem do tempo e com o peso dos carros; melhorar os acessos entre passeio e estrada em passadeiras e semáforos; investir no transporte colectivo e nos modos de locomoção que não produzem poluição; e ainda combater ferozmente o estacionamento indevido em cima dos passeios e sobre as passadeiras.
E vocês? Que acham?
(Texto e imagem: Ana Isabel Ramos)