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Vais imaginar o que escrevo

12 Março, 2017

“Desta vez não dou fotografias. Vais imaginar o que escrevo, sem outro estímulo que não seja o da imagem já feita, das memórias, porque sei que são lugares que conheces.”

Se há caminhos que gosto de refazer quando tenho algum tempo livre, é passear pela chamada zona histórica de Lisboa para ver o que mudou. Rua de São José abaixo e começas a ver como o turismo vai subindo paulatinamente a rua pelas lojas novas que vão surgindo, lojas de souvenirs massificados – valha-nos a miniatura da Nossa Senhora de Fátima, que de contentor em contentor lá faz o seu caminho da China até Portugal, que deve ter atracado ali pelos lados de Sines e que agora assenta arraiais na loja de um senhor Paquistanês que está aberto pelo menos até à meia noite e que nos dá um jeito e tanto quando queremos comprar cigarros. Como fica bonita multiplicada por cem na prateleira de vidro da montra da loja a abençoar os fiéis passantes e a ajudá-los a fincar o passo no passeio estreito com largura de três palmos.

Mais a Sudoeste (e não falo no festival, mas no ponto cardeal para que não fique esquecido) basta-me fazer o macadame completo da Rua da Rosa para saber que o Bairro Alto não pára e que se podem estudar como camadas geológicas as quantidades de negócios diferentes que habitaram um espaço comercial apenas nos últimos dez anos, fecha-abre-fecha-abre-junta-fecha e por aí fora.  Restaurante novo, atelier(slash)loja nova, concept store ou lá como é que gostam de chamar onde era mercearia ou um pequeno armazém, e cheio de criaturas que pensam ser novas e irreverentes, mas não passam de uma nova roupagem numa história que se há-de repetir ad nauseam. Habitantes sombra de um espaço que pensam ser seu.

Quanto à Baixa Pombalina não consigo nem nomear, ou se começar tenho medo de não parar. É a loja do Benfica à frente das paelleras volumosas que ocupam meia rua em cima de mesas de gentes estridentes que armam o tablao no meio da Augusta, é o pastel de bacalhau com queijo da serra no sua centenarríssima existência que tem apenas 2 anos de vida (impenitente simpatizo com a causa da Senhora Maria de Lurdes Modesto) é toda uma enxurrada de lojas, hostéis, artista de rua, máquinas ao pescoço e linguajares alheios. É a tontura em forma de rua calcetada.

Mas adiante no caminho antes que me levantem a calçada de baixo dos pés e a substituam por betão.

Se há sítio por onde gosto de passear é pelo eixo Conserveira de Lisboa-Estação de Santa Apolónia. Uma vez mais tenho de lutar com as novas tabuletas a dizer “gourmet”, “do bairro”, “lisboeta”… por cima da minha cabeça onde parecem repetir-se os mesmo nomes com as palavras apenas arrumadas numa ordem nem sempre diferente, as montras e os toldos, os chapéus de sol nas esplanadas e os empregados dos espaços esses, parecem todos saídos de uma máquina trituradora e descaracterizante, em nome dos 4,8% do PIB. Todas as pastelarias têm o melhor pastel de nata de Lisboa, quiçá de Portugal, que comunicam em certificados espetados nas paredes com um prego enferrujado de sapateiro, que furou as junções de massa dos azulejos brancos, em molduras de 1,75€ da loja dos chineses. E como me faz falta entrar num café ali na Rua do Jardim do Tabaco e estarem a falar do penalty que passou por cima da trave, do fora de jogo mal marcado, com o entusiasmo de jugular palpitante, que dantes tanto me incomodava e que agora dá lugar a conversas sobre quanto o quarto rendeu num fim de semana em que estiveram lá os franceses, e em como não pode estar às 5 no café porque tem de ir fazer um check in e os hóspedes já lhe mandaram uma mensagem a dizer que são capazes de chegar atrasados. E como esta conversa me apressa os gestos e me faz sair mais rápido. Saio ligeira e quase comovida com o presenciar da mudança em tamanha escala, num desassossego e desengonço de sacrilégio ouvido, de escutado.

Sigo, segue, segue.

Em frente à entrada principal à estação de comboios de Santa Apolónia, demoro-me na estátua que é o monumento ao emigrante. Uma família moldada em traço recto de fuga, o movimento todo enquadrado para um avançar destemido e honrado de quem ama o país que larga, um monumento agora rodeado de taxistas e coberto de dejectos vários de pombo, que tem regularmente como pano de fundo os paquetes dinossáuricos dos cruzeiros que trazem até nós reformados abastados do norte da Europa. É vê-los fazer gincanas aceleradas de passadas feitas de meias e sandálias a ver se compram o melhor Porto e provam o melhor pastel de nata anunciado na moldura de 1,75€. Tiveram eles de ir para poderem estes vir?

Não sei se é o Velho do Restelo em mim, mas as mudanças dos últimos anos deixam-me ansiosa antes de me deixar nostálgica e conformada. Ou também pode acontecer que a minha percepção da mudança se tenha transformado em conjunto com a percepção do tempo, e que estes agora se me meçam em partículas de continuidade e de cenho franzido.

Ou então é só mesmo saudade.

Texto: Samanta Velho