“Todas as manhãs o Senhor Francisco percorria as ruas da aldeia fantasma…”
“… tentando imaginar uma vida nova nestas ruas.”
“Oh querida Aldeia da Luz…”
“… temos de te deixar…”
“A 8 de fevereiro de 2002 as comportas da barragem do Alqueva foram fechadas, conduzindo à esperada submersão da aldeia da Luz. Entre o verão e o outono desse ano, pessoas (vivos e mortos), bens, plantas e animais foram mudados para um novo aldeamento, criado de raiz, a cerca de 3km da velha povoação. No mês de setembro foi feita a última festa dedicada à padroeira na antiga Luz e realizou-se a abertura do ano lectivo na escola da nova aldeia. A antiga Luz foi demolida entre março e setembro de 2003, antes de o lugar ser coberto pela água da albufeira.” (Museu da Luz)
A nova aldeia não é uma réplica da original Luz.
O carro entra devagar pela calada aldeia da Luz. Ninguém nas ruas, nem um cão, nem um gato. A aldeia tornou-se num ponto de passagem para o Museu da Luz. Quem chega não vai à Luz, vai à procura das memórias da velha aldeia preservadas nas salas do Museu da Luz.
As Ti Marias e os Ti Manéis não estão nas soleiras das portas. Os vasos das flores revelam que ali há vida. As plantas estão viçosas, regadas mas as pessoas… onde estão as gentes da Luz? Como estão elas? Como se sentem? O que sentem?
Parada na entrada do Museu, olho para o Alqueva na tentativa de encontrar o lugar da antiga aldeia. É um momento nostálgico e inevitável, este, o da procura do lugar de origem. Todos temos um lugar de origem. Uns permanecem nele até morrer, outros procuram novas paragens para viver. Todos temos um lugar de origem, seja ele a casa dos nossos pais, o pátio da escola onde brincávamos com os amigos de infância, a rua onde se jogava à bola ou ao elástico, a árvore que servia de forte ou porto de abrigo… lugares onde podemos regressar.
Os lugares de origem das gentes da Luz são agora referências, coisas imateriais que se sabem de memória e se perpetuam com a lembrança das histórias dos seus habitantes. Mesmo por opção própria, é difícil partir e deixar o lugar de origem. A perspectiva do regresso torna a viagem possível, mais leve. Ir e não mais se poder voltar parece-me uma viagem dura de suportar.
Saio do Museu e procuro um café na aldeia. Quero ver as pessoas da aldeia, quero olhar para elas! Ter a certeza de que sobreviveram à perda, à transformação radical das suas vidas! Quero sentir essa esperança! Entro no primeiro café e peço o meu café, uma água, sento-me ao balcão e fico ali um bom bocado. Olho para a televisão, oiço as conversas dos três homens que ali estão. Há pessoas na Luz e parecem-me bem. Bebem minis, comem pratos de enchidos, falam da vidinha, do futebol. Parecem-me bem… queria muito perguntar-lhes coisas… que me contassem histórias, que me fizessem ficar mais tempo por ali… Pago, deixo gorjeta e saio da Luz menos inquieta, mais tranquila.
Pouca gente pára por ali, a Luz tonou-se num ponto de passagem para o Museu da Luz, para as memórias da antiga aldeia da Luz. A nova aldeia é ignorada, todos vão à procura do lugar da velha aldeia submersa, da Atlântida do Alentejo. Tal como o Senhor Francisco, imaginar vida nas ruas da nova aldeia é por vezes difícil, mesmo quando se está por lá, mas ela está lá, é só preciso entrar.
(Texto e composição: Raquel Félix – Portugalize.Me/ Imagens retiradas do documentário “A minha aldeia já não mora aqui“, Catarina Mourão)