É impossível passar-se despercebido pelo 138 da Rua de São José em Lisboa. Admirar a Leitaria Manteigaria “A Minhota” requer paragem, tempo, atenção. Cá fora, o azulejo que publicitava o negócio de outrora, é porta de entrada para uma visita obrigatória ao seu dentro.
Pedir um café é mandatório. Procuro uns croquetes ou uns pasteis de bacalhau na montra do balcão. Fico-me pelo café. Sento-me. Aprecio os movimentos da dona da casa. De cotovelos apoiados no balcão, Dona Fernanda, segue o programa da TV e sorri à medida que entrevistam os utentes do termalismo social de uma qualquer zona do país. Ao lado do plasma moderno um aviso ao cliente: “Freguês educado não cospe no chão, não pede fiado, não diz palavrão.” Ali exige-se respeito, educação.
Meto conversa. Dona Fernanda fala-me de si, do negócio, da rua, das pessoas da rua, da pena que sente pela casa que cuida há mais de 50 anos e do receio que tem de poder vir a fechar para breve. “Já vi nascer e morrer tanta gente…”, diz Fernanda do alto dos seus quase 80 anos.
Há quase 100 anos atrás, era ali que muitos lisboetas compravam a granel manteiga fresca, caseira. Há quase 100 anos atrás, a Rua de São José não era apenas um ponto de passagem. Agora, vive como que esquecida e com o peso de ser “uma das ruas paralelas” à Avenida da Liberdade. “Do lado de lá é o luxo e do lado de cá é o lixo…”, diz a Dona Fernanda com ar de serena razão. “A rua tinha muitos antiquário, agora quase não resta nenhum.”
“Venho para aqui muito cedo. Moro no Bairro Alto.” Pergunto-lhe se o barulho não a incomoda… “Não. Assim que o barulho acaba já sei que é hora de eu acordar. É o meu despertador. E os jovens estão ali na rua a beber, a cantar, a divertir-se. Também já fui jovem.” Também “A Minhota” já foi jovem e teve em tempos casa cheia. Restam os do bairro e os curiosos que por vezes entram só para tirar umas fotografias e nada mais.
Falar com a Dona Fernanda faz parte do serviço da casa. É raiz e essência deste tipo de comércio. Saber quem está do lado de lá do balcão é coisa única e em vias de extinção, não só a casa em si, mas as pessoas que fazem destas casas espaços distintos, diferenciados. “Eu escrevia muito, gosto muito de escrever. Tinha cadernos e cadernos sobre Sintra. Tinha também uns cadernos de receitas. Agora a cabeça já não dá…”
Agora espera-se, olha-se a rua para descobrir o que ainda não se sabe, o que ainda está para vir. Os tempos modernos são duros para os lugares com história. A cidade tende a esquecer lugares e pessoas. É um mau hábito que, a meu ver, coloca em risco a unicidade e a identidade da cidade de Lisboa. Mas quem diz Lisboa diz qualquer outra terra do país.
Deixo “A Minhota” levando a Dona Fernanda no meu pensamento. Vou ser freguesa da Dona Fernanda. Já sou freguesa da casa. A Avenida da Liberdade é a “avenida paralela” à Rua de São José. Do lado de lá estão as montras, do lado de cá, as histórias e a essência.
Vou ficar pelo lado de cá.
Texto e imagens: Raquel Félix – Portugalize.Me