Portugal tem um calcanhar. Chama-se Cidadelhe. Uma aldeia perdida na Beira Alta assim chamada por se encontrar no limite do concelho de Pinhel.
Reencontrada por José Saramago numa “Viagem a Portugal” e mais tarde por um paquiderme indiano, “Salomão”, em “A Viagem do Elefante”, Cidadelhe não é bem um calcanhar, não em forma, é calcanhar por ter vulnerabilidades, tal como Aquiles tinha.
Cidadelhe tem um segredo com mais de 300 anos. Um belíssimo pálio bordado a ouro e seda em veludo carmesim típico de Veneza, guardado de casa em casa, em segredo absoluto, pelos seus habitantes (salvo a família que o recebe, mais ninguém na aldeia sabe onde se encontra, desta forma, o pálio nunca regressa à casa de onde saiu e apenas sai à rua no Domingo de Páscoa, durante a Procissão do Santíssimo).
O segredo de Cidadelhe, ao contrário do segredo de Aquiles (a vulnerabilidade do seu calcanhar), não é uma fraqueza em si, muito pelo contrário, ele é contraste quando confrontado com os verdadeiros calcanhares da aldeia: o isolamento, o esquecimento do país face às suas aldeias, o abandono…
O segredo é a alma da aldeia e a partilha comunitária, a cola que une os habitantes de Cidadelhe. O sentimento de comunidade é ainda muito forte por estas bandas, mais forte que uma armadura. O povo de Cidadelhe há 300 anos que protege parte da sua história em nome de uma identidade própria, em nome da sua memória, da sua continuidade. Se a total desertificação de Cidadelhe acontecer, significará que a aldeia foi ferida de morte, directamente no seu calcanhar.
Enquanto houver casas que abram as portas ao pálio, Cidadelhe não morrerá. Desejo eu crer.
“Seremos capazes de resistir a uma nova invasão, não de Espanha, como sucedia antigamente, mas da apatia, indiferença e egoísmo?.” (José Saramago)
(Texto: Raquel Félix – Portugalize.Me/ Imagens: Fundação José Saramago)