“O que é que trouxeste da terra?” Dito assim, parece haver em Portugal um grupo de pessoas com terra e outro sem terra.
“Que vais fazer este fim de semana? Vou à terra. Vais passar as férias onde? À terra.”
Durante anos, ir à terra foi costume rotineiro, típico de uma estudante deslocada a quase 400 km da dita. O comboio foi parente assíduo de várias idas e voltas. Matavam-se as saudades com uma “faca grande” sem nunca cortar as raízes, abasteciam-se os pulmões com ar próprio para a saúde, viam-se umas quantas caras familiares para não se perder o ritmo do bom dia ou boa tarde (coisa mais rara de se praticar numa cidade de meio milhão de habitantes) e no regresso, enchia-se a bagagem de coisas boas, com coisas da terra.
Passado algum tempo, as viagens continuam, mais espaçadas e tendo o carro como parente. Continua-se a matar as saudades e a encher os pulmões e a bagagem com coisas da terra. Mas se antes as coisas da terra eram mais para consumo próprio, o mote agora é mais de partilha. “Queres levar umas garrafas de vinho para dar a alguém?” Diz o meu pai. “Leva mais doces para dar!” Diz a minha mãe.
O dar tornou-se mais frequente. O que se traz da terra passa agora de mão em mão. Dá-se, recebe-se, troca-se, oferece-se. Dou uns doces, recebo uns ovos caseiros que alguém também trouxe da terra. Dou uma garrafa de vinho, recebo umas peras e umas batatas. Num país tão pequeno, rara é a pessoa que não tenha uma ligação à terra, se por se ter uma tia com galinhas, uma avó com salsa com fartura ou um amigo cujos pais ainda fazem pão a lenha.
No meio deste supermercado informal de troca directa, preserva-se amizade, confiança, pratica-se uma espécie de bom dia e boa tarde numa cidade de quase meio milhão de pessoas. E assim, remediamo-nos um pouco mais, com produtos de qualidade redobrada, garantida pela forma artesanal com que são cultivados e criados e pelo amor com que são dados.
“Da próxima vez que fores à terra, diz-me o que de lá trazes. Podemos trocar! Sabes, é que é tudo tão bom! O cheiro, o sabor, as cores, a alma inerente a cada produto, a cada peça de fruta, a cada legume. Quando como um pedaço de pão trazido da terra, consigo imaginar as mãos de quem o amassou. Conheço-lhe o rosto. A comida torna-se mais familiar. Voltarei em breve, para o Natal. Devo trazer couves, açorda de bacalhau feita pela minha mãe e espremida pelo meu pai (tem de estar bem espremidinha). Talvez traga umas chouriças e mais doces para que a vida não seja tão amarga.
Quando eu lá for aviso para podermos trocar sabores e podermos perguntar: que mais é que trouxeste da terra?”
Texto e imagem: Raquel Félix – Portugalize.Me