Nasci no tempo das cerejas

26 Julho, 2015

Tenho um pequeno altar em casa (nas palavras cruzadas chamam-lhe ara), um nicho na parede onde reúno os meus santos, onde faço a devoção ao português kitsch, onde oro à estética de um século XX tão rico em iconografia, em significado e desmultiplicação de significantes, onde se cruzam tantos extremos e cronologias, que me espanta o que Portugal foi durante o século que passou, que me chega a ser comovente toda a festa, todo o luto, todo o contínuo inacabado.

O rol do altar:

Uma colecção de Nossas Senhoras de Fátima onde não falta a fluoroscente, a meteorológica, a estilizada e a original sempre acompanhadas das pombas, as purezas cheias de penas. Tamanhos vários, texturas e cor distintas, mas o rosto é sempre o mesmo, o de dor infinita, a herança de todas as mães que perderam os filhos;

O Santo António o padroeiro do meu 13, da minha porta, do meu lar, da minha cova, a minha tonsura adorada com o menino ao colo, sem cheiro a sardinhas, sem sangria espalhada no chão, sem arcos nem balões, mas com um ano inteiro de véspera de festa, um ano inteiro de manjerico;

Um maxi single do Marco Paulo e da sua branca afro, o “Quem vier por Bem” e o “Mais e mais amor” – e não, não vou entrar em detalhe no quão acertado é este alinhamento naquele “altar” – um resumo tão magnificamente ilustrado do que era a estética pop portuguesa nos anos 80, no ínico dos anos 80, apenas um ano mais novo que eu. Verdade seja dita que me apetece enterrar os dedos naquela trunfa e desfazer-lhe os caracóis. E ter novos olhos para ver o que nesse tempo ainda não conseguia, porque não sabia e não podia compreender – os primeiros anos de um país novo, os anos que ditaram muito do que somos agora, o que fizemos sendo filhos de uma recém liberdade, que me parece agora esbanjada em actos de peito feito a um demasiado desconhecido, mas isto já vem do tempo dos mastros e das caravelas.

Tenho também, recordações das viagens de amigos, que são sagradas pelo simples facto de se terem lembrado de mim quando andavam por lá, por em algum momento ter feito parte da viagem com eles. Há um Corcovado que parece um jogo de espelhos do Fontória, um deus de Bali que parece uma dama de tocado da corte francesa do século XIV, umas figuras pitorescas do presépio de louça português, que se (pre)dispõem a todo o tipo de posicionamentos, mais ou menos convenientes e alusivos.

E o Galo de Barcelos, que não tem poleiro próprio em cima do napperon do frigorífico, mas que ficou arrumado ao pé dos outros como pai vigilante a tomar conta da capoeira. Não canta de madrugada, faz do silêncio apanágio, como forma de agradecimento é a ele que limpo o pó com mais frequência.

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E depois está lá ela, que faria anos a 23 de julho (segundo o seu registo), aliás, que irá sempre fazer anos hoje, ou algures entre Maio e Julho, no tempo das cerejas. Quase toda uma estação para comemorar, ou neste caso celebrar a voz e pessoa.

Amália, não a consigo homenagear com a voz como tantos fazem, não lhe sei dedicar palavras como o Variações o fez, que a elevou a hino (e como a esse o cantaria com tão mais sentir e paixão, do que este que hoje temos, que repetida e incessantemente nos faz marchar contra canhões, pois é para isso que servimos). Não a sei pintar ou desenhar, só a sei de cor. Versões, gravações infindas em português, inglês, francês, castelhano tudo aquela mulher cantou, desde que primeiro lhe tocasse a alma. E eu procuro essas versões, muitas vezes com a avidez com que procuraria a absolvição da confissão, ou talvez uma ou outra contricção breve. É a experiência mais próxima que tenho de uma dedicação religiosa, um recolher meditativo, uma voz com vários mantras que me dão equilíbrio e paz – 1972 o registo do albúm Encontro com o saxofonista Don Byas, a guitarra portuguesa sem perder o seu lugar único, e a “Libertação” a sair-lhe do corpo como se um filho fosse.

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Mas seriam tantos os exemplos, a interpretação do tema “Grandola”, do “Silêncio”, do “Avé Maria Fadista”, do “Barco Negro”, do “Barco Negro”, do “Barco Negro”… A recuperação de Camões, do folclore português (ouvir o Valentim cantado por ela é ouvir o Minho do meu pai e ele a contar as primeiras vezes que saiu à noite, e de como o meu avô mais preocupado que castigador o esperava). Seria tão mais pobre se não a ouvisse, se por algum azar tivesse nascido antes dela, ou numa realidade onde ela nunca exisitiu, sei-o.

E agora o Ruben Alves teve a feliz e ilumidada ideia de juntar um grupinho de boa gente e criar o Amália Vozes do Fado. Tem os meus fadistas favoritos a cantar os meus fados favoritos da minha fadista mais favorita de sempre, e isto em modo de discurso de criança, porque não vale a pena complicar o que é tão bonito e bom.

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A Ana Moura e o Bonga põem-me a dançar na cadeira do trabalho com o “Valentim”, as interpretações do Ricardo Ribeiro da Mayra Andrade e do Caetano, vão fazendo cair fronteiras e ideias feitas e mostram que o fado pode ser tanta coisa, às vezes pode começar só aquele arrepio à primeira nota e acabar com ondas de estremecimento que Richter iria querer tomar nota de. O Camané deixa-nos irremediavelmente sós a cantar o “Abandono”, não há abraço que nos salve da sua voz nesta interpretação. E a Gisela e o “Medo”, a Gisela e o “Medo”… se vos disser que não consigo escrever mais, que tenho o corpo todo em pranto…

(Texto e imagem 1: Samanta Velho para o Portugalize.Me)