Já foi há tanto tempo que nem me lembro da idade concreta que tinha. É compreensível porque as coisas concretas sempre me fizeram uma certa “espécie”. Falo dos meus 9/10/ 11 anos… foi por essa altura, não concretamente. Tinha o que se chama, uma bela corcundinha de estimação (em termos mais sérios e técnicos, uma cifose). A minha deformação na coluna vertebral fez de mim, durante uns longos 3 anos, uma espécie de alien.
A coisa em si sempre me foi pacífica porque isto de se ser criança, “abafa” tudo o que de ruim possa existir. A infância é um filtro poderoso! Para os meus pais passou a ser uma preocupação, uma questão de saúde futura e, como tal, lá andámos nós a caminho dos Hospitais Universitários de Coimbra e do Dr. Tomé para percebermos o que se poderia fazer para corrigir a minha “má” postura, o meu “eixo” torto.
Tudo começou com ginástica localizada, dormir com uma almofada nas costas, ter atenção à postura… mas uma criança quer lá saber das boas posturas! Eu queria sentar-me em modo escorrega nas cadeiras e cadeirões lá de casa, da escola, da casa da vizinha, da casa dos amigos, do café, da esplanada… o ideal teria sido a natação mas em Pinhel… só no rio Côa (muitas foram as vezes que por lá nadei, ao lado do meu pai, da minha irmã, e a minha mãe sentada na margem a tricotar).
Plano B… usar um aparelho que mais parecia uma cruz… um ferro ao longo da coluna, preso por um cinto e umas alças, por sua vez presas a outro ferro, que me ia corrigindo os costados, e mais uma fita em feltro que apertava no pescoço. O aparelho era feito à medida, muito subtil, discreto, ninguém conseguia perceber que eu tinha um bocado de ferro ao longo da minha coluna.
A parte alien surgia apenas quando algum colega mal humorado me tentava dar um safanão e batia com os nós dos dedos no ferro. Primeiro estranhava, depois questionava e por fim, assimilava.
Nunca deixei de fazer nada de nada por causa de tal objecto. Jogava ao elástico, à bola, à apanhada, ao mata (as boladas nunca me magoavam)… e por vezes até me sentia uma espécie de heroína com super poderes!
Nunca fui olhada de forma “diferente” porque nunca me permiti a tal.
Lembro esta fase da minha vida enquanto leio sobre o Salvador e a sua Associação (Associação Salvador). Saltou-me à vista a maneira como a Associação prima por promover uma postura activa no que respeita à integração das pessoas com deficiência motora na sociedade e a melhorar a sua qualidade de vida. Inspirou-me a forma como o Salvador emana vida, atitude, sem nunca permitir que os outros o olhem dessa forma “diferente”.
“Desde que me desloco numa cadeira de rodas que me deparo com muitas atitudes preconceituosas que, muito honestamente, me surpreendem e entristecem, pois muitas pessoas não conseguem perceber que as pessoas com deficiência não são “coitadinhas” e podem ser felizes e realizadas.”
As “próteses” que a vida “oferece”, muitas vezes por vias da dor… porque sempre se foi assim… outras “oferecidas” por breves momentos por não se ter uma estrutura suficientemente forte… podem transformar-se em verdadeiros ensinamentos. Em parte, é isso que o Salvador deseja passar a todos ao assumir-se como interveniente na defesa dos direitos das pessoas com deficiência motora.
(Texto: Raquel Félix – Portugalize.Me/ Imagens: Associação Salvador)