A escravatura está viva e bem de saúde, é o que constato quando ouço os abusos de que as empregadas domésticas no Panamá são alvo.
No outro dia escrevi aqui sobre as vidas difíceis dos emigrantes e sobre como essas mesmas vidas são vistas como glamorosas nos países de origem. Hoje falo-vos de alguns detalhes da vida das empregadas domésticas, muitas imigrantes da Nicarágua e de outros países da região, outras panamenhas do interior do país.
Para começar, algo que nos causou muito espanto quando estávamos à procura de casa aqui foi constatar que, em casas e apartamentos gigantescos, os aposentos de serviço são mínimos, muitas vezes sem luz natural nem ventoinha (muito menos ar condicionado). As casas de banho de serviço não dispõem de água quente, apesar do esquentador da casa poder estar colocado na divisão ao lado.
No nosso caso, como não tencionávamos ter uma empregada interna, não nos preocupámos com o assunto. Do quarto da empregada, mínimo, fizemos uma despensa; e enchemos o duche com caixotes da mudança. Notámos que nos apartamentos deste prédio as máquinas de lavar e secar roupa tinham a tubagem perto da janela, e que portanto recebiam luz natural; já o quarto da empregada, o tal onde dormiria um ser humano, e contíguo ao das máquinas, não.
Quando contratámos a nossa colaboradora amiga, surpreendia-me todos os dias com as perguntas que me fazia: que copo podia usar; que comida tinha autorização para comer. Nem queria acreditar que em muitas casas as empregadas bebem água de um só copo, o delas, e que nem ousem acalentar a ideia de comer da mesma comida, porque isso já é esquecer a sua “posição” na casa.
Hoje ouvi a história da empregada que foi fechada dentro da arca congeladora, como castigo; noutro dia, a empregada que ficava fechada à chave dentro de casa, não fosse ela roubar ou sair antes da hora; a minha colaboradora foi contratada para ficar como interna numa casa onde o seu quarto era tão pequeno que não cabia uma cama. Ela dormiu – até se despedir, pouco tempo depois – no chão, de pernas dobradas. Noutra casa onde trabalhou, foi chamada de estúpida por uma criança de três anos, que também lhe bateu repetidas vezes, até finalmente se cansar da situação e se despedir do emprego.
Histórias destas são às mãos cheias, num país que se designa a Singapura da América Central. Recordam-nos que as injustiças retratadas na longa metragem “The Help“, que conta a história do pessoal de serviço negro no sul dos Estados Unidos, em meados do século XX, são ainda actuais. Tão actuais, que o realizador panamenho Abner Benaim dedicou dois títulos da sua filmografia a este tema: “Chance“, uma comédia em que as empregadas, fartas dos maus tratos, se rebelam; e “Empleadas y Patrones“, um documentário.
Nesta história, os panamenhos não são maus e os estrangeiros bons; há muitos panamenhos que se revoltam e há muitos estrangeiros que são coniventes com esta situação, às vezes são até perpetradores destes selvagens abusos de poder. Debaixo deste verniz de luxo e modernidade que aqui se vive, há horrorosos ataques à dignidade humana; e as vítimas, infelizmente, nem sabem que se podem defender.
Sempre o glamour, o glamour… mas onde está o glamour da migração?
(Texto: Ana Isabel Ramos)